terça-feira, 10 de março de 2009

Até onde vai o Direito Administrativo?

Escolhi o tema que se segue pelo facto de ter vivido em Macau grande parte da minha vida e, infelimente, ter vindo a assistir, desde a transferência de soberania do território para a República Popular da China em Dezembro de 1999, ao gradual desaparecimento da presença, da língua, e da cultura portuguesa na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), pelo que me sinto na obrigação vos consciencializar quanto a passividade do Estado Português face ao último episódio que tem dominado a actualidade naquele território: as instalações da Livraria Portuguesa estão prestes a ser vendidas.


  Para que compreendam bem o que está em questão convém situar-vos na realidade da RAEM. Apesar de não ser a única livraria que venda livros portugueses no território, só a Livraria Portuguesa consegue satisfazer determinadas necessidades da comunidade portuguesa, macaense, chinesa e mesmo estrangeira. É o único sítio onde se pode adquir uma grande parte dos jornais de Portugal, revistas portuguesas da actualidade, livros portugueses, manuais escolares e até música portuguesa. Além disso, encontram-se também livros portugueses e estrangeiros traduzidos para chinês e vice-versa, livros que provávelmente não se encontram em mais lado nenhum. É também um espaço com uma galeria que tem sido utilizada ao longo dos anos para exposições, apresentações de livros, conferências, colóquios, etc. 


A Livraria Portuguesa é propriedade do Insitituto Português do Oriente (IPOR), uma associação constituida em 1989, pessoa colectiva de direito privado, com natureza associativa, autonomia financeira e património próprio  (art. 1º do Estatuto do IPOR), com o fim de “preservar e difundir a língua e a cultura portuguesa no Oriente e promover o conhecimento das culturas orientais, com vista à continuidade e ao aprofundamento do diálogo intercultural entre os portugueses e os povos do Oriente, participar no apoio de raiz cultural portuguesa, valorizando a ligação entre si e com Portugal, tendo como objectivo último e fundamental, o estreitamento das relações dos respectivos países com Portugal, concorrendo, na especificidade da sua intervenção, para o intercâmbio e a cooperação entre Portugal e os países da região Ásia- Pacífico, nos vários domínios das relações entre os Povos, designadamente valorizando a difusão da Língua e Cultura Portuguesa como instrumento privilegiado de promoção das relações culturais, económicas e de cooperação empresarial com os países daquela região, contribuindo para que Macau seja o pólo aglutinador de uma presença renovada de Portugal no Oriente e local privilegiado de relacionamento Oriente/Ocidente” (http://www.ipor.org.mo/), como frisa o art. 2º do Estatuto do IPOR. É uma instituição detida em 51% pelo Estado Português através do Instituto Camoes (IC), sendo os outros 49% detidos por várias instituições públicas  e privadas, nas quais se destacam a Fundação Oriente, o Banco Comercial de Macau, o Banco Espírito Santo, o Banco Nacional Ultramarino, a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), etc.


Esta livraria sita na Rua das Mariazinhas, uma das ruas mais centrais e de maior movimento da cidade, na continuação do Largo do Senado, o centro da cidade, a zona mais turística, onde qualquer turista com certeza a encontrará. A sua excelente localização permitiu não só servir toda a comunidade em pleno, como também difundir a língua e cultura portuguesa no Oriente, consubstanciando o fim do IPOR. Todas estas características fazem da Livraria Portuguesa um verdadeiro marco histórico e cultural da presença portuguesa na RAEM e no Oriente, um autêntico símbolo da cidade.


Pretende agora o IPOR vender as instalações da Livraria Portuguesa, que adquiriu à Administração Portuguesa de Macau pela irrisória quantia de cerca de 900,000.00 patacas (cerca de 90 000 Euros), permitindo uma receita de uns cinquenta e tal milhões de paracas (mais de cinco milhões de Euros), verba essa associada, segundo a associação, à ideia da crição de um fundo para o desenvolvimento do ensino do português no território, contudo sem especificar o modo como seria efectivamente aplicada. Além disso, o IPOR pretende aínda entregar, novamente sem concurso, a exploração da Livraria a outro particular, instalando-a, eventualmente, num prédio estreito sem condições e distribuída por quatro andares sem elevador, numa zona menor da cidade, deixando de dispor de instalações próprias para passar a operar em instalações arrendadas, ficando assim sujeita à incerteza das flutuações do mercado imobiliário, nomeadamente ao aumento de rendas e eventual cessão do contrato. Perante isto, a comunidade portuguesa e macaense anda em polvorosa. Sente-se traída, defraudada e abandonada pelo seu próprio Estado. Sente-se envergonhada perante a própria comunidade chinesa quando esta nos questiona porque é que nós portugueses nos queremos livrar de tudo aquilo que é nosso.


O Instituto Camoes (IC) é um Instituto Público, sob tutela e superintendência do Ministerio dos Negocios Estrangeiros. Os seus estatutos frisam, no seu art. 2º (Portaria 509/2007 de 30 de Abril) que ao IC compete “a gestão da rede de docência da língua e cultura portuguesa a nivel básico e secundário no estrangeiro”, para que aliás criou uma das três Direcçoes de Servicos do IC com o título Direcção de Serviço de Coordenação de Ensino Português no Estrangeiro. 


Ora, a grande questão que se coloca é saber se este conflito de interesses (interesse da comunidade versus venda das instalações) encontra solução no Direito Administrativo, visto estar envolvido um Iinstuto Público, o IC (sócio maioritário do IPOR com 51% do seu capital), e estar em causa um interesse considerado público pela comunidade. Assim, levanto aqui várias questões a quem estiver interessado para uma reflexão e um melhor esclarecimento.


 Foi decidido em Assembleia Geral de Sócios do IPOR, em Lisboa, em Dezembro de 2008, a venda das instalações da Livraria Portuguesa. Tratando-se de uma pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública da RAEM terá o Estado português deveres e poderes de autoridade sobre a mesma? Poderá e deverá a deliberação do IPOR ser controlada pelo Direito Administrativo de Portugal visto que a referida associação é detida em 51% pelo Estado português, por via do IC, que é um Instituto Público sob tutela e superintendência do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Haverá alguma forma de responsabilizar o Estado português quanto à defesa do interesse da comunidade no Direito Administrativo de Portugal, ou seja, poderá a referida deliberação ter constituído algum tipo de invalidade no âmbito do Direito Administrativo de Portugal? Ou estaremos nós no âmbito de uma mera decisão política relativa a uma boa gestão do interesse e da coisa pública (Res Publica) do Estado Português? Assim sendo, será que a única forma da comunidade do território tentar fazer valer os seus interesses quanto a esta questão encontra-se no Direito Constitucional, no recurso ao direito de petição, consagrado no art.52º CRP? Estas são as questões que eu levanto.


A Casa de Portugal, associação sedeada na RAEM e que representa a comunidade portuguesa e macaense no território, já tomou várias iniciativas com intuito de fazer valer o interesse da comunidade, e numa última tentativa de “salvar” a Livraria Portuguesa, classificada por essa comunidade (à qual eu me incluo) como património cultural da cidade, das poucas heranças portuguesas que aínda restam no território, elaborou uma petição, que já conta com mais de três mil e quinhentas assinaturas, e a qual os interessados podem encontrar em http://www.petitiononline.com/cpmlivpt/petition.html.


Links úteis:


Estatuto do IPOR: http://bo.io.gov.mo/bo/ii/2000/05/anotariais.asp#18


Site do IPOR: http://www.ipor.org.mo/index.php?name=Sections&req=viewarticle&artid=1&page=1


Estatuto do IC: http://www.instituto-camoes.pt/documentos-de-gestao/estatutos-do-instituto-camoes-i.p.html


Site do IC: http://www.instituto-camoes.pt/index.php


Petição da Casa de Portugal: http://www.petitiononline.com/cpmlivpt/petition.html.




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